“São Paulo virou filme do Zé do Caixão
Se este final de verão paulistano um dia virar filme, o roteiro será do Zé do Caixão.
Primeiro, uma mulher desova cabeças de gente há muito tempo morta em frente a templos religiosos e consulados. Ao ser presa, ela alegou problemas mentais. Ontem, um motorista irresponsável encheu a cara na balada, atropelou e decepou o braço de um ciclista e desovou o braço do ciclista ainda vivo no rio antes de se entregar aos bombeiros, e não à polícia. Ao ser detido, recusou-se a fazer o teste do bafômetro”.
O texto chama a atenção para a sinistra disposição de partes do corpo humano. Mas, por estranho que seja, as duas situações geram resultados totalmente diferentes na lei.
No caso da mulher e os crânios que ela espalhou pela cidade, ela cometeu vilipêndio a cadáver. A remoção dos crânios é vilipêndio (provavelmente também cometeu outros delitos, como a violação de sepultura).
O morto, em si, não tem direito a nada. Depois da morte, os restos mortais não têm direitos (em juridiquês, a morte faz com que o corpo deixe de ser um sujeito de direito e passe a ser um objeto de direito, como uma mesa, um carro ou um animal). Mas os vivos têm o direito de preservarem a memória de seus entes queridos. Daí a lei proteger o direito da família e da sociedade de zelar pela memória de seus antepassados, e punir criminalmente quem fere tal direito. A punição ao vilipêndio a cadáver é uma dessas formas de proteção.
Já no caso do braço, no Brasil não há lei que puna o que ele fez (jogar o braço fora). Ele não vilipendiou um cadáver porque ele jogou fora o braço de uma pessoa viva (ainda que tenha sido ele o responsável pela amputação). Se o ciclista está vivo, não se pode falar em cadáver. O braço não é uma pessoa, logo, ele não é 'parte de um cadáver'. Seria se a pessoa estivesse morta.
Da mesma forma não se pode falar em destruição, subtração ou ocultação de cadáver porque, por sorte, não há um cadáver. Se ele houvesse matado o ciclista e jogado no rio os pedaços de seu corpo, aí sim, haveria a ocultação de cadáver. Braços, pernas, ou o que mais seja possível amputar sem matar a pessoa não constitui um cadáver. O cadáver só surge quando já não há mais vida. Até lá, ele responde por crimes cometido em relação a quem perdeu os órgão, tecidos ou membros: lesão corporal (gravíssima), tentativa de homicídio, tortura etc. O filme 'Encaixotando Helena', por exemplo, não seria ocultação de cadáver até que Helena de fato morresse. O que ele 'encaixotou' antes da morte, não era crime.
No caso do atropelamento, a conduta criminosa foi a lesão corporal gravíssima ou a tentativa de homicídio. O jogar um pedaço do corpo fora enquanto a vítima está vida, em si, não é crime. A punição pela segunda conduta (jogar o braço fora) precisará ser feita através da aplicação de uma pena maior ao crime cometido na primeira conduta (lesão corporal ou tentativa de homicídio). Compare isso, por exemplo, com quando a pessoa mata e esconde o cadáver. Neste caso ele seria punido pelas duas condutas: homicídio e ocultação de cadáver.
Mas aí fica a pergunta: por que a lei não pune a conduta (jogar o braço no rio) do motorista? Afinal, se ela pune quem esconde o fêmur de um esqueleto, por que ela não pune quem faz a mesma coisa com o braço de de um vivo?
A razão é simples: porque a segunda conduta não é só absurdamente trágica, mas absolutamente inusitada. Quantas vezes você já ouviu falar de um caso parecido? Afinal, o ‘normal’ é que a pessoa pare e ajude a vítima ou fuja sem prestar socorro. Você provavelmente nunca tinha ouvido falar de alguém que atropela, deixa de prestar socorro, recolhe o membro e tenta escondê-lo. Sem fazer um prejulgamento da conduta do motorista, essa é uma conduta que foge totalmente do que é esperado. Mesmo de um criminoso. Já o vilipêndio a cadáver é um delito muito mais corriqueiro (pense nos dentes de ouro, por exemplo). Logo, o legislador sentiu necessidade de lidar com uma conduta mas não com outra.
As leis são feitas à medida que surge a necessidade de regular uma determinada conduta. Agora que sabemos que alguém pode se comportar como o motorista se comportou, provavelmente faremos uma lei a respeito. Mas como a lei será feita depois da ação do motorista, ele não poderá ser afetado por tal lei: apenas pessoas que cometam os atos descritos na lei depois de sua entrada em vigor é que poderiam ser punidos. A lei penal brasileira não volta no tempo para prejudicar o suspeito.